domingo, 30 de março de 2014

O Post Em Que o Marcus Deixa Claro Que Não Veio Pra Holanda Só Para Beber

/* pergunta para pensar enquanto lê o texto, especialmente voltada para os amigos artistas e curiosos: quantos pontos de fuga pode ter um desenho com perspectiva? */

      Aqui na Rijksuniversitei Groningen (apenas RUG, para os íntimos) o ano letivo é dividido em dois semestres e cada semestre é dividido em dois períodos. A pessoa se matricula em cada período em cadeiras diferentes. Um ponto positivo é que é possível ser muito mais focado no que se está fazendo, e um ponto negativo é que se não houver organização tu acaba se metendo em uma corrida caótica louca contra o relógio.
      Como chegamos um pouco atrasados por causa do visto, uma das disciplinas em que estávamos matriculados nos "recusou", uma vez que os grupos foram definidos no primeiro dia de aula e não estávamos lá para isso. O professor não teve nem pena, nos disse com a simplicidade de uma facada que não seria possível que acompanhássemos as aulas.
      Mas para cada período nos matriculamos em duas cadeiras, como acordado com a CAPES. A cadeira desse período que não recusou nossa participação foi Introdução à Computação Gráfica. Pretendo não aborrecê-los com os detalhes, só o suficiente para mostrar que apesar de parecer que é só desenhar bolas, na real não é só desenhar bolas.
      A cadeira segue o padrão de toda semana ter uma aula e uma sessão de laboratório. Em cada sessão de laboratório é lançada uma proposta de trabalho que deve ser entregue até a próxima sessão de laboratório e feita em dupla. No total foram 6 trabalhos nesse período.
      Três destes trabalhos foram baseados em OpenGL, que pessoalmente eu ainda não aprendi a gostar, mas é extremamente útil e dá resultados que em geral são no mínimo tão bons quanto os gráficos de Counter Strike. Os outros três trabalhos são implementar por partes um Raytracer, um approach de gerar imagens que simula (prepare-se para ser mindblown) os fótons e suas interações com os objetos na cena e o olho do observador. Parece complicado e na verdade é um pouco mesmo. Eu estaria meio ferrado se tivesse que fazer isso sozinho; toda a programação envolvida é bem avançada para mim, mas tenho muita sorte do Alex, minha dupla de trabalho, ser um paladino level 90 em C++.
      Um ponto interessante é que várias daquelas coisas que aprendemos na escola e que pensamos que nunca mais iriamos usar são usadas nesse tipo de aplicação. Saber se um raio que passa pelo olho do observador e por um pixel da tela também passa por uma das esferas da cena (e se o ponto em que esse raio intersecta essa esfera está sendo iluminado pelas luzes da cena) tem tudo a ver com fórmula de Bhaskara e geometria analítica daquelas mais básicas.
      A parte legal do Raytracer é que depois de pronto, fica bastante ““““fácil”””” fazer mudanças que simulem espelhos, bolas de gude, fumaça, etc. No nosso é possível ver sombras e reflexões (e reflexões das reflexões! Potencialmente enlouquecedor e lindo).

Knuffel!

/* resposta à pergunta do início do texto: não é 3! É infinito. Para cada conjunto de linhas paralelas que se quer representar na imagem, haverá um ponto de fuga associado. Isso foi tão surpreendente pra mim quanto quando eu descobri que o som da agulha arranhando o vinil é a música gravada lá; só fui digerir a informação no dia seguinte à aula. */

Pra cada ponto que a visão do observador atinge é calculada a forma como a luz interage com a matéria e qual a cor resultante naquele pixel (segundo o modelo de iluminação de Phong). Aqui ainda sem reflexões nem sombras.
Essa aqui usa um tipo diferente de modelo matemático para a iluminação (Gooch). A linha preta ao redor dos objetos dá um ar de cartoon, né?
So Long, And Thanks For All The Fish! (duas luzes, modelo 3D de golfinhos, textura da Terra, reflexões a dar com pau: arte)

sexta-feira, 21 de março de 2014

Bicicletas

    Esse blog não se propõe a ser um relato completo do que acontece comigo nesse ano, nem tampouco de ser uma coleção de artigos científicos sobre as características da Holanda, como eu já explicitei no primeiro post. No entanto, nenhum relato (mesmo que incompleto) nem coleção de artigos (mesmo que não-científicos) com o nome de Holandês Voador* poderia se chamar assim se não falasse de algo que, aqui, é tão comum e parte do cotidiano quanto respirar. E esse algo, é claro, são as bicicletas, e não maconha como a mente poluída e mal-intencionada de alguns deve com certeza ter pensado.
    A coisa mais importante a se falar sobre as bicicletas é que elas estão em todo lugar. Mesmo que os holandeses sejam um povo muito pouco religioso, eles acreditam na onipresença das bicicletas, e nisso eu também tenho fé. As ruas daqui de Groningen são todas planejadas levando-se em consideração que há mais bicicletas do que pessoas no país. Isto quer dizer que a exceção aqui são as ruas sem ciclovia; no geral, todas tem.
    Existem milhares de variações em bicicletas, para todos gostos, bolsos e necessidades. Tem as para uso na cidade, as para uso em competições e viagens, para mulheres, para homens, para pessoas com bebês, com cesta, com compartimento de carga, com reboque, com banco extra-confortável, com farol que carrega conforme tu anda, com bolsas atrás, uma infinidade. Tem para diferentes tamanhos de pessoas também, o que aqui na Holanda significa alto, muito alto, extremamente alto e “holandês típico”. Já vi modelos de bicicletas que pareciam ter saído do Need For Speed Underground 2, e uma vez babei em uma bicicleta estilo Harley Davidson, cuja compra, pelo preço, estaria condicionada à retirada de parte do fígado e um rim. Alguns lugares vendem acessórios para disfarçar a ferrugem, e não é incomum encontrar bikes hippies que por baixo de todas as flores são na verdade tétano-bikes.
    Outra coisa que chama atenção das pessoas como eu que cresceram em uma cultura carrocentrista, é que há sinaleiras para bicicletas. Um cruzamento típico de duas ruas grandes vai ter as sinaleiras dos carros, as dos pedestres e as das bicicletas. As sinaleiras das bicicletas em um cruzamento ficam verdes todas ao mesmo tempo; então há pessoas indo do ponto A ao ponto B, do ponto C ao ponto D, do ponto A ao ponto C, etc., às vezes até tem alguém indo do ponto A ao ponto A de novo, porque esqueceu alguma coisa em casa (tão eu). Quem observa de fora simplesmente não consegue entender o que está acontecendo; dezenas de bicicletas se cruzando sem se chocar, é fascinante. Para quem observa de dentro, no entanto, é o caos: toda vez que me vejo nessa situação, sinto como se a qualquer momento eu fosse causar um engavetamento de bicicletas. Isso nunca aconteceu, é claro.
    No entanto já me envolvi em um acidente e um quase acidente. O acidente foi um dia em que eu estava em cima do laço para ir pra aula, e a velocidade em que estava dirigindo a bicicleta estava em ressonância com esse fato. Mal saí da quadra da minha casa, entrando na ciclovia olhei para a direção de onde poderia estar vindo bicicletas, a esquerda, e acelerei porque não vi nenhuma. Porém, da outra direção estava vindo uma mulher e eu só não lhe arrebentei a perna porque freei no ultimo instante. Ainda assim foi uma batida considerável. A mulher já tinha um machucado na perna, e isso agravou um pouco a situação, mas eu lhe ofereci ajuda e esperei até que ela parasse de chorar e todos sobrevivemos ao ocorrido, ela com um roxo e eu aprendendo que não se entra numa ciclovia naquela velocidade.
    O quase acidente aconteceu porque alguns lugares daqui oferecem café. Explico: quando estava saindo de um desses lugares, notei a máquina de café e a palavra universal "gratis". Não pude resistir e peguei um capuccino. Sai dirigindo com uma mão só, a outra segurava o capuccino. Eu poderia argumentar que fiz isso porque estava com pressa ou algo assim... mas não. É só porque eu sou uma besta às vezes. Como estava com as duas mãos ocupadas, não pude fazer sinal para avisar que dobraria à esquerda. O carro atrás de mim, vendo que eu não fiz sinal, imaginou que eu não entraria à esquerda e agiu de acordo, quase passando por cima de mim no momento em que eu fui, sem avisar, pra esquerda. Freio, buzina, e na hora em que eu esperava que o cara fosse me bater (não de carro, me refiro a sopapos mesmo), ele só parou um pouco o carro, perguntou se eu estava bem e pediu para eu tomar cuidado. Até pediu desculpas pelo ocorrido! Eu fiquei em choque. Tanto pelo ocorrido quanto pela polidez extraordinária do cara.
Além da polidez que é comum por aqui, é preciso falar também do preparo físico do pessoal da bicicleta. Imagine a seguinte cena: você está lá, pedalando pela sua vida, contra o vento, a perna reclamando da falta de potássio da sua dieta, quando de repente escuta o sinal da campainha da bicicleta de trás, pedindo passagem. Você dá passagem, é claro, porque você nem sempre é uma besta. Quem te ultrapassa? Uma senhora, idade suficiente para ser sua avó, dando carona para a neta, carregando compras na cesta na frente da bicicleta, segurando uma sacola de compras do Jumbo Supermarkt, passando por cima de seu ego e lhe dando uma lição de humildade. Depois das primeiras passa a doer menos.

  Por muito tempo não entendi o porquê de tanta gente ter uma paixão tão grande por ciclismo e tudo que está relacionado. Agora, no entanto, creio que sentirei grande falta disso quando voltar para a Terra Brasilis. Bicicletas tem lá, mas e as ciclovias e as vovós atletas e os motoristas bem-educados? Não dá pra simplesmente levar na mala.

Fim de tarde no estacionamento do Academy Building. Cadê a minha bicicleta??

Knuffel!

* - Ainda preciso explicar o nome do blog, mas isso fica pra outra hora.

segunda-feira, 3 de março de 2014

Os anjos do Grote Markt

Eu queria escrever sobre várias coisas que eu tenho visto e aprendido aqui, coisas que tivessem alguma utilidade ou que fossem curiosas por si só. Queria escrever sobre o carnaval, sobre a dinâmica de um grupo em que todo mundo é estrangeiro, sobre como é fazer compras por aqui, sobre as festas, sobre as holandesas. Mas às vezes acontecem alguns episódios que não podem deixar de ser compartilhados, e que invertem totalmente a ordem dos assuntos que eu gostaria de abordar. Sábado passado me aconteceu um desses, e hoje vou contar sobre as duas pessoas que eu conheci no Grote Markt.
O Grote Markt é uma praça que fica no centro de Groningen, e é onde estão localizadas a Martinitoren e o Drie Gezusters ("Three Sisters"); o primeiro é uma torre e ponto turístico importante da cidade, o segundo é um bar (que na verdade são três) muito famoso entre os boêmios. Alguns dias da semana tem feira no Grote Markt, e a praça fica muito parecida com o Mercado Público de POA.

Eu não estava muito legal, estava meio pra baixo, saudade de casa e dos amigos. Um pouco de homesickness e muito da minha melancolia usual.

Abre parênteses: quando fazemos uma mudança grande, temos a fantasia (mais ou menos como as de carnaval, mas falo daquele outro tipo de fantasia) de que tudo vai se resolver e tudo vai ser lindo. Não é assim. Onde quer que você for, você vai estar lá. Por isso não é de se espantar que aqui, tanto quanto em Novo Hamburgo, eu ainda tenha meus momentos de frustração e de lago parado (reflexivo e profundo). Fecha parênteses.

Eu tinha que ir ao centro para comprar minha fantasia para a festa do Carnaval de noite (low budget custom: um tapa-olho e uma espada de plástico e está feito o pirata por €2), e resolvi dar uma caminhada ali entre os peixes e frutas e afins a ver se melhorava.
E eis que no meio da confusão de preços e sotaques eu vejo de longe uma cabinezinha de madeira, dentro da qual estavam duas mulheres sorridentes. Uma delas até abanou para mim, eu sorri em resposta e discretamente saí correndo para o outro lado.
Mas aquilo aguçou a minha curiosidade e em menos de cinco minutos eu estava em frente a cabine novamente. Agora eu já conseguia ler a plaquinha pendurada que dizia "Complimentenlokt", algo como "Cabine do Elogio". O diálogo que tivemos foi mais ou menos o seguinte:

Eu: - Olá!
Elas: - Olá! (em holandês)
Eu: - Desculpe, eu não falo holandês.
Elas: - Não tem problema, nós falamos todas as línguas do mundo.
Eu: - Ah, ótimo, eu sou brasileiro, vamos falar em português.
Elas: - Hmm, precisamente português é a única língua que não falamos, pode ser em inglês?
Eu: - É claro.

A essa altura eu já me sentia melhor. É impressionante o que um pouco de contato com outros seres humanos pode fazer ao nosso humor.

Eu: - Então... Como isso funciona? Vocês vão me elogiar ou algo assim?
Mulher 1#: - Ah sim, claro. Lá vai: eu de verdade gosto da sua aparência, o jeito que deixou a barba e como arruma o cabelo. Gosto porque dá para ver que você se cuida.
Eu: - Muito obrigado, não é todo dia que se escuta isso.
Mulher 1#: - De nada.

Isso tudo acontece com sorrisos. Nesse momento eu faço menção de ir embora, mas elas me chamam de volta.

Mulher 2#: - Espera, eu também te dou um elogio. E é o seguinte: quando te vi vindo na nossa direção, era como se eu visse um anjo, muita coisa boa.

Eu não entendi muito bem se ela quis dizer que eu era o anjo ou se eu estava acompanhado por um, mas não importava. Eu agradeci sem palavras, porque nem em português eu saberia como agradecer a algo assim, e saí. Em mais cinco minutos eu voltei e perguntei se poderia dar um abraço nelas, é claro que elas acharam estranho, mas deram. No meio do segundo abraço, uma delas falou "sanduíche!" e me deram um abraço-sanduíche, um dos melhores tratamentos contra melancolia crônica já inventados.

Não vou ser (mais) dramático e dizer que magicamente me senti melhor na hora: isso não existe. Mas de fato meu dia começou a melhorar a partir dessa intervenção inesperada.
Grande parte dos problemas das pessoas se deve ao fato de que não chegamos a tocar emocionalmente as outras pessoas; nos escondemos no nosso individualismo de tal maneira que mesmo o simples ato do elogio gratuito vira algo absolutamente fora do comum.

Eu não acredito em anjos do tipo convencional, mas com certeza acredito que em alguns momentos nós encontramos algumas pessoas que podem ser consideradas anjos. Por enquanto tive sorte, tenho encontrado muitos anjos ao longo da minha vida, e as duas mulheres do Grote Markt são um bom exemplo disso.

Knuffel!