sexta-feira, 21 de março de 2014

Bicicletas

    Esse blog não se propõe a ser um relato completo do que acontece comigo nesse ano, nem tampouco de ser uma coleção de artigos científicos sobre as características da Holanda, como eu já explicitei no primeiro post. No entanto, nenhum relato (mesmo que incompleto) nem coleção de artigos (mesmo que não-científicos) com o nome de Holandês Voador* poderia se chamar assim se não falasse de algo que, aqui, é tão comum e parte do cotidiano quanto respirar. E esse algo, é claro, são as bicicletas, e não maconha como a mente poluída e mal-intencionada de alguns deve com certeza ter pensado.
    A coisa mais importante a se falar sobre as bicicletas é que elas estão em todo lugar. Mesmo que os holandeses sejam um povo muito pouco religioso, eles acreditam na onipresença das bicicletas, e nisso eu também tenho fé. As ruas daqui de Groningen são todas planejadas levando-se em consideração que há mais bicicletas do que pessoas no país. Isto quer dizer que a exceção aqui são as ruas sem ciclovia; no geral, todas tem.
    Existem milhares de variações em bicicletas, para todos gostos, bolsos e necessidades. Tem as para uso na cidade, as para uso em competições e viagens, para mulheres, para homens, para pessoas com bebês, com cesta, com compartimento de carga, com reboque, com banco extra-confortável, com farol que carrega conforme tu anda, com bolsas atrás, uma infinidade. Tem para diferentes tamanhos de pessoas também, o que aqui na Holanda significa alto, muito alto, extremamente alto e “holandês típico”. Já vi modelos de bicicletas que pareciam ter saído do Need For Speed Underground 2, e uma vez babei em uma bicicleta estilo Harley Davidson, cuja compra, pelo preço, estaria condicionada à retirada de parte do fígado e um rim. Alguns lugares vendem acessórios para disfarçar a ferrugem, e não é incomum encontrar bikes hippies que por baixo de todas as flores são na verdade tétano-bikes.
    Outra coisa que chama atenção das pessoas como eu que cresceram em uma cultura carrocentrista, é que há sinaleiras para bicicletas. Um cruzamento típico de duas ruas grandes vai ter as sinaleiras dos carros, as dos pedestres e as das bicicletas. As sinaleiras das bicicletas em um cruzamento ficam verdes todas ao mesmo tempo; então há pessoas indo do ponto A ao ponto B, do ponto C ao ponto D, do ponto A ao ponto C, etc., às vezes até tem alguém indo do ponto A ao ponto A de novo, porque esqueceu alguma coisa em casa (tão eu). Quem observa de fora simplesmente não consegue entender o que está acontecendo; dezenas de bicicletas se cruzando sem se chocar, é fascinante. Para quem observa de dentro, no entanto, é o caos: toda vez que me vejo nessa situação, sinto como se a qualquer momento eu fosse causar um engavetamento de bicicletas. Isso nunca aconteceu, é claro.
    No entanto já me envolvi em um acidente e um quase acidente. O acidente foi um dia em que eu estava em cima do laço para ir pra aula, e a velocidade em que estava dirigindo a bicicleta estava em ressonância com esse fato. Mal saí da quadra da minha casa, entrando na ciclovia olhei para a direção de onde poderia estar vindo bicicletas, a esquerda, e acelerei porque não vi nenhuma. Porém, da outra direção estava vindo uma mulher e eu só não lhe arrebentei a perna porque freei no ultimo instante. Ainda assim foi uma batida considerável. A mulher já tinha um machucado na perna, e isso agravou um pouco a situação, mas eu lhe ofereci ajuda e esperei até que ela parasse de chorar e todos sobrevivemos ao ocorrido, ela com um roxo e eu aprendendo que não se entra numa ciclovia naquela velocidade.
    O quase acidente aconteceu porque alguns lugares daqui oferecem café. Explico: quando estava saindo de um desses lugares, notei a máquina de café e a palavra universal "gratis". Não pude resistir e peguei um capuccino. Sai dirigindo com uma mão só, a outra segurava o capuccino. Eu poderia argumentar que fiz isso porque estava com pressa ou algo assim... mas não. É só porque eu sou uma besta às vezes. Como estava com as duas mãos ocupadas, não pude fazer sinal para avisar que dobraria à esquerda. O carro atrás de mim, vendo que eu não fiz sinal, imaginou que eu não entraria à esquerda e agiu de acordo, quase passando por cima de mim no momento em que eu fui, sem avisar, pra esquerda. Freio, buzina, e na hora em que eu esperava que o cara fosse me bater (não de carro, me refiro a sopapos mesmo), ele só parou um pouco o carro, perguntou se eu estava bem e pediu para eu tomar cuidado. Até pediu desculpas pelo ocorrido! Eu fiquei em choque. Tanto pelo ocorrido quanto pela polidez extraordinária do cara.
Além da polidez que é comum por aqui, é preciso falar também do preparo físico do pessoal da bicicleta. Imagine a seguinte cena: você está lá, pedalando pela sua vida, contra o vento, a perna reclamando da falta de potássio da sua dieta, quando de repente escuta o sinal da campainha da bicicleta de trás, pedindo passagem. Você dá passagem, é claro, porque você nem sempre é uma besta. Quem te ultrapassa? Uma senhora, idade suficiente para ser sua avó, dando carona para a neta, carregando compras na cesta na frente da bicicleta, segurando uma sacola de compras do Jumbo Supermarkt, passando por cima de seu ego e lhe dando uma lição de humildade. Depois das primeiras passa a doer menos.

  Por muito tempo não entendi o porquê de tanta gente ter uma paixão tão grande por ciclismo e tudo que está relacionado. Agora, no entanto, creio que sentirei grande falta disso quando voltar para a Terra Brasilis. Bicicletas tem lá, mas e as ciclovias e as vovós atletas e os motoristas bem-educados? Não dá pra simplesmente levar na mala.

Fim de tarde no estacionamento do Academy Building. Cadê a minha bicicleta??

Knuffel!

* - Ainda preciso explicar o nome do blog, mas isso fica pra outra hora.

7 comentários:

  1. Hahaha can't find a better description! :D You made me laugh! haha

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  2. Se todo mundo que viaja tivesse a tua sensibilidade e o teu jeito de narrar, teríamos muito mais boas histórias para ler :)

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    1. Sempre dá um friozinho na barriga antes de postar uma coisa dessas, é bom ler esse tipo de reação :) Valeu Leo!

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  3. Sensibilidade é a palavra! Tu consegues captar coisas no cotidiano e transmitir com tal maestria que me emociona. Neste aqui eu ri e chorei! Quando eu crescer quero ser que nem tu! Abraço.. saudade amigo!

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    1. Valeu Karen! Me alegra muito que tu esteja gostando :) Abração! E saudades também!

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