quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Anatidaefobia

O medo é um instrumento evolutivo poderoso. Quando se vive no tempo das cavernas e se vê dentes pontiagudos, garras letais e um olhar nada amigável há duas possibilidades: um tigre-dentes-de-sabre encontrou o seu esconderijo na montanha ou sua sogra passou para dar uma visita. De uma forma ou de outra, é prudente estar com medo.
Nos tempos mais recentes em que tigres-dentes-de-sabre não são um problema do dia-a-dia, o medo se revela de formas mais criativas. Medo de altura, medo de lugares abertos (e fechados), medo de ficar sozinho, medo de ficar numa multidão, medo da sombra - até de medo de estar sendo observado por patos já ouvi falar. Até onde eu sei de psicologia, pode nem ter a ver com a coisa em si; o medo é só um sintoma de alguma questão mais profunda, portanto pode ter muito mais por trás dos patos.

Agora estou quase completando duas semanas de intercâmbio (ou: "oi, meu nome é Marcus...", "oi Marcus!" "...e faz duas semanas que eu não estou no Brasil") e tive que enfrentar alguns medos. Primeiro, antes mesmo de vir, eu tive que enfrentar o medo da inscrição pro intercâmbio, que pode parecer pequeno, mas dar o primeiro passo aterroriza. Mais tarde, o pesadelo kafkiano de ter que lidar com toda a burocracia envolvida e o medo de esquecer algum detalhe. O medo de não ter ninguém por perto aqui. O medo de não se adaptar aqui. O medo de fazer algo errado. Teve vários momentos em que eu deitava na minha cama aqui, olhava para o teto e percebia o quão longe eu estava de todo mundo que eu conheço. Aquele misto louco de solidão e independência, o sentimento misturado de quem adora conhecer pessoas novas mas que por outro lado ama os amigos que já tem.
Mas no fim das contas, passar por todos esses obstáculos só está fazendo a coisa toda mais valiosa. Isso me demonstrou que o verdadeiro crescimento vem quando você enfrenta o que te deixa acuado, quando você dá aquele passo sem que ninguém te dê garantias de que adiante vai haver chão para pisar, quando você sai da zona de conforto e se aventura seja aonde for que você vai.

Por causa da minha natureza cética e questionadora, eu sempre falei que as pessoas deveriam sobretudo pensar sobre o que estão fazendo. Agora eu vejo que na verdade é muito importante também agir, e lidar com o que vier de consequência. Tudo bem sentir medo do tigre, desde que você se lembre de pegar a sua lança para se defender (e dependendo da sogra, talvez valha o mesmo).

Ou seja: encare os seus patos!

Perto de casa tem esse parque com alguns laguinhos, e patos nos laguinhos.

É só estacionar a bicicleta que eles já vem pra perto para serem alimentados.

Além dos patos tem esses outros pássaros aí que roubam os pedaços de pão que eu estou tentando dar pros patos.

Esse saiu do 9gag e está dizendo "Não seja paralisado por seus medos!".

Vai dizer, muito bonitinho.
Knuffel! (descobri recentemente que "omhelzing" é na verdade bem formal, então essa outra forma para "abraço" é mais apropriada)

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Adaptação

Segundo Darwin, sobrevive o bem adaptado às circunstâncias, e as circunstâncias mudam. Por exemplo a galinha, que por causa da domesticação humana adaptou-se e ficou saborosa.
Quando eu vim para cá, tinha ideia sobre algumas das dificuldades que eu encontraria em ter que lidar com tanta gente nova e com uma cultura totalmente diferente da que eu estava acostumado. Acontece que eu não estava totalmente ciente de uma característica minha, bem relevante quando se tem que ser independente em um país novo, fruto da minha criação de filho único e paparicado: eu não sei cozinhar.
Bom, não é que eu não saiba fazer nada; alguma coisa eu sei fazer na cozinha. No entanto, não se pode viver de torrada com ovos mexidos (por mais maravilhoso que esse prato seja quando eu faço; questão de prática), nem de Pringles ou cookies ou Twix (que são bem baratos aqui). É tudo muito gostoso, mas chega uma hora que ou a espécie evolui ou é extinta.
Por isso parti pra internet em busca de ajuda, e meu amigo Jan Luc, que mora sozinho a mais tempo que eu, me ensinou a fazer frango frito, via Facebook.

Seguem as instruções, como eu as segui:

Ingredientes:

- uma peça de frango (embora frango não seja Lego; aqui, por peça, refiro-me àquele corte em que a coxa e a sobrecoxa vêm juntas);
- três dentes de alho (que pode ser bem difícil de achar no supermercado caso você não se lembre o nome em inglês: é garlic; alternativamente, apele para o seguinte pedido: "onde está aquela coisa, parecida com cebola, mas menor, e que quando uma pessoa come demais fica com mau hálito?");
- uma xícara de arroz;
- óleo;
- sal;
- água.

Instruções:

Ponha numa panela um pouco de óleo, sal e um dente de alho picado. Ponha numa frigideira bastante óleo e os outros dois dentes de alho picados. Leve a primeira panela ao fogo (apenas a primeira, porque convenhamos que tentar fazer as duas coisas ao mesmo tempo é pedir para cagar com tudo). Deixe o alho fritar por um momento e então ponha o arroz na panela. Rapidamente coloque água de forma que fique mais alto do que o arroz, e deixe a panela daquele jeitinho com a tampa em cima mas sem fechar completamente.
Nesse momento, cumprimente a chinesa que acabou de entrar na cozinha e mostre pra ela o que está fazendo. Isso é importante para a receita porque no dia anterior a chinesa riu quando soube que você estava jantando sucrilhos.
Assim que a chinesa voltar para seu quarto, prepare a galinha (na embalagem diz "kippenbout") passando-lhe um pouco de sal. Deixe-a esperando na bancada. Ela não vai se importar porque está morta.
O arroz talvez esteja pronto quando a água secar, mas isso não é 100% garantido. Quando a água seca, o processo volta a ser interativo e você fica provando o arroz; enquanto não estiver pronto, acrescente mais água.
Assim que o arroz estiver pronto, leve a frigideira para o fogão, em fogo baixo porque - repitamos - você não tem tanta experiência assim. Deixe a misturinha fritar um pouco, e em seguida acrescente a peça de galinha já temperada com sal à jacuzzi de óleo fervente. Este momento é crítico: você vai se queimar. Conforme-se.
Como a frigideira é muito grande, você vai ter que segurá-la inclinada de modo que o óleo fique mais fundo e em contato com uma maior porção da superfície da galinha. Você deve torcer para que ninguém entre na cozinha nesse momento, porque o jeito que você segura a frigideira para não se queimar é no mínimo cômico. Vire a galinha de vez em quando, e quando parecer pronto você espera mais um tempo e daí está pronto mesmo.

O resultado é um prato de arroz e galinha frita que ficou quase, mas não totalmente, completamente diferente do que quando a minha mãe faz. O arroz ficou um pouco empapado, porque deveria ter ficado mais tempo no fogo e/ou deveria ter recebido menos água. A galinha até que ficou boa, mas mais por mérito dela e do Darwin do que meu. E mesmo assim, foi uma janta bastante decente e, creio eu, muito boa para uma primeira vez.


"Hmmmmm"
Omhelzing!

Adendo (11/02/2014): refiz a receita, agora passando o alho na galinha e a galinha no trigo antes de fritar, e botando menos água no arroz e o resultado foi beeem mais satisfatório.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Primeiras impressões

Eu tive um excelente professor no ensino médio, que foi durante três ou quatro anos um guia para mim e para os demais bobalhões que já tinham tamanho e nada além disso para lidar com a vida adulta que estava a frente. Quando estava ensinando sobre entrevistas de emprego, falou sobre como é importante a primeira impressão que as pessoas tem de nós, e também a primeira impressão que temos delas. Segundo ele, a maior parte da imagem que uma pessoa faz da outra é construída nos primeiros 15 segundos de contato.
Quando cheguei na Holanda, em Amsterdam no aeroporto de Schiphol (que eu não sei pronunciar, mesmo escutando várias vezes o piloto falar a bordo - o piloto era português, então muito pouco do que ele dizia eu entendia de fato) a primeira impressão que tive do país foi mágica: um friozinho gostoso dentro do aeroporto, um frio desgraçado do lado de fora, pessoas passando em todas as direções falando ao telefone em vários idiomas, luzes que acendem apenas quando alguém se aproxima (e os cartazes das paredes afirmam que isso economiza até 50% da energia gasta pelo sistema normal), setas e informações para que mesmo os brasileiros mais perdidos ainda consigam achar o caminho para a estação ferroviária, etc.
Os pontos negativos eu compreensivelmente reprimi por enquanto, é inconsciente. A única coisa que me chamou a atenção de "negativo", as aspas são porque isso não chega a ser negativo, é apenas um aspecto diferente e que me chamou a atenção, foi o jeito das pessoas no trem. Não é aquele contato, as pessoas são bem mais distantes do que estou acostumado. No entanto, se tu pede ajuda para qualquer coisa, ela imediatamente ajuda como pode, e assim que o trabalho está feito ela volta a cuidar da própria vida. Achei interessante.

Pois bem, depois do trem chegamos em Groningen, e já em casa arrumei meu quarto e tomei um banho. Então por acaso passei por dois caras espanhóis (0:01) e me apresentei (0:03). Eles também se apresentaram (0:07), e depois do nice to meet you eu me virei para entrar de volta no meu quarto (0:11) e eles chamaram Hey, Marcus! (0:12) e me convidaram para ir com eles a uma festa que estava sendo dada em outra casa de estudantes internacionais (0:14) e eu aceitei (0:15). E foi assim que eu cheguei à conclusão que o Mestre Jaime estava de fato correto.

Vou evitar ao máximo citar nomes, por isso vou me referir às pessoas por sua nacionalidade ou outra característica. Na cozinha laranja, que é a que eu uso (aqui nesta casa os moradores estão divididos em grupos, e cada grupo compartilha uma cozinha e um banheiro) tem 1 holandês, 1 indiano, 1 luandês, 1 espanhol, 3 chinesas e 1 brasileiro (eu). Como aquela rainha da Inglaterra, podemos dizer que "o sol nunca se põe no território da cozinha laranja".

Omhelzing!

PS: vou abrir uma exceção aqui: um dos espanhóis (que já voltou pra casa, estava apenas visitando) chama-se Jesus. Quem diria hein? Precisei viajar 10600 km para encontrar Jesus. (risos)

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

As flores e o resto

E nesse post trato do resto.

Quem estiver planejando fazer alguma viagem que seja grande, já vá se preparando psicologicamente para a aplicação prática da Lei de Murphy. Por mais organizado e cuidadoso que você seja, alguma coisinha vai sair errado, alguma data não vai ser atendida, algum abacaxi precisará ser descascado. Falo isso porque me deparei com várias dessas situações, e não seria honesto deixar esse aspecto da experiência fora do blog. Tem que ter jogo cintura, tem que rebolar e, às vezes, inclusive rebolar pode não ser suficiente e você vai ter que dançar quadradinho de 8 na brita, ou algo assim.
Mas nessas horas, é preciso dizer, você vê que pode contar com várias pessoas para ajudá-lo, e que essas pessoas por sua vez também tem sua própria capacidade de resolver problemas. Tendo uma rede de segurança, não precisa ser necessariamente você contra o sistema.

A última situação envolveu consulados, ligações interestaduais e o fato de que um dia antes da viagem ainda não tínhamos o visto em mãos. Apesar da coisa não ter sido divertida, acrescentou uma dimensão extra de adrenalina para a viagem e me proporcionou aquela sensação agradabilíssima de num dado momento perceber que as coisas iam dar certo (muito semelhante a descobrir numa quarta-feira que quinta-feira é feriado e sexta-feira será ponte).

Ossos do ofício: porque nem tudo são flores, mesmo numa viagem para o país das fotos das plantações de tulipas.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Preâmbulos

A vida é uma sucessão interminável de caminhos e escolhas, e a configuração específica de caminhos e escolhas que eu tomei me trouxe até esse momento icônico da minha história: vou fazer um intercâmbio de um ano na Holanda, a começar na quinta-feira próxima, quando embarco, e terminar em algum ponto de fevereiro ou março de 2015.

E eu, que normalmente estou cheio de pensamentos, tantos que nem sempre consigo organizá-los o suficiente para compartilha-los com o resto do mundo, decidi criar esse blog (seguindo conselhos de um amigo) para botar essas ideias pra fora. A experiência tem me mostrado que quando eu consigo fazer isso invariavelmente me sinto melhor, mais leve. Não existe uma relação específica entre ideia e peso na cabeça como a que existe entre massa e energia (valeu Einstein!), mas seja qual for essa relação, botar pra fora funciona e é um santo remédio.

A ideia aqui é que eu possa compartilhar algumas das ideias que me ocorram nesse ano que eu vou passar fora. Este blog não é um diário de bordo, mas não exclui-se a possibilidade de em algum momento parecer-se com um; não é um blog normal porque a experiência de viver em outro país com certeza vai nortear grande parte dos meus pensamentos, mas não é impossível que de vez em quando algum post acabe não tendo nada a ver com nada; não é um blog que pisca.

Aqui acabarei eventualmente respondendo algumas questões bastante relevantes:

- como é caminhar em um hemisfério diferente, depois de vinte anos acostumando-se com o Efeito Coriolis?
- é verdade que dá para abrir um Macbook nos ônibus da Holanda?
- é verdade que a prostituição lá é legalizada? e existe algum meio melhor para conseguir dinheiro suficiente para comprar um Macbook, além da venda de órgãos sobressalentes?
- viajando 10 mil quilômetros a uma velocidade aproximadamente constante de 1000km/h e levando em consideração a Teoria da Relatividade, quantos milissegundos de vida em relação a um hipotético irmão gêmeo que ficou no Brasil eu terei ganhado ao desembarcar em Amsterdam?
- por quê diabos "Holandês Voador"?

Além de todas as demais perguntas que me aparecerão nos próximos tempos. Então afivelem os cintos, mantenham suas poltronas reclinadas em um ângulo de 15,3º em relação à vertical, e aproveitem a paisagem tanto quanto os bebês nas fileiras de trás permitirem.

Omhelzing!